(Entrevista concedida a Luíza de Andrade)
Essa é a história de uma menina e de um pássaro encantado que se apaixonaram. O pássaro voava para longe e voltava sempre, contando histórias de onde passou. Sofrendo com as constantes partidas do amado, a menina resolveu prendê-lo. Engaiolado, o pássaro mudou. Perdeu as cores nas asas; ficou sem canto. A menina também se entristeceu e acabou por abrir a gaiola. O pássaro agradeceu e partiu e ela passou a ver o mundo como um lugar encantado. Começou a se enfeitar e a se fazer bela, sempre à espera de um reencontro.
A moral dessa história é sabedoria imprescindível aos amantes, apaixonados, casados e namorados; aos pais e aos filhos, aos avós, netos, amigos, patrões e empregados. Afinal, ela ilustra uma verdade defendida pelo escritor Rubem Alves: “Não há amor que resista a perda da liberdade. Se não houver liberdade, não existe possibilidade que o amor dure.”
Luíza de Andrade – Aprender a viver junto é aprender, primeiro, a viver só?
Rubem Alves – As pessoas que não sabem viver sozinhas estão o tempo todo mendigando aprovação das outras. É preciso aprender a viver só, aprender a fazer silêncio, para poder conviver com o outro, porque dentro de cada um mora uma grande solidão. Há um lugar dentro da gente que ninguém vai, somente nós. E nem nós mesmos sabemos como é esse lugar. Então temos que aprender a respeitar a solidão do outro e a nossa própria solidão. Há pessoas que não suportam a solidão do outro, acham que, quando o outro quer ficar sozinho, é uma indicação de que ele não está amando. Não é nada disso.
Luíza de Andrade – O senhor já disse que o amor se revela a coisa mais triste quando descobrimos que não amamos quem pensamos amar e só nos resta alimentar da nostalgia que “rosto algum poderá satisfazer”. O amor está fadado sempre a viver de nostalgia?
Rubem Alves – Há um verso da Adélia Prado que diz “O amor é a coisa mais alegre, o amor é a coisa mais triste, o amor é a coisa que eu mais quero.” O amor está fadado a uma nostalgia pelo fato de que a gente sabe que o desejo da gente é possuir a pessoa amada. A sabedoria nos mostra que não é possível possuir nada, nem mesmo a nós mesmos. Então, porque eu nunca possuo, existe sempre uma pitada de nostalgia, sabe? É precisamente essa pitada nostálgica que torna o amor belo. O amor desapareceria se houvesse a certeza da posse.
Luíza de Andrade – Isso se aplica a todos os relacionamentos que envolvem afeto?
Rubem Alves – Claro. Veja a questão dos filhos. Quando era mais jovem, meus filhos estavam naquela fase difícil da adolescência. Saíam, passavam a noite inteira fora, era perigoso. Vários filhos de amigos nossos morreram em desastres, em confusões, era aquela angústia permanente que eu tinha. Até que um dia me dei conta de que precisava aceitar a possibilidade da morte dos meus filhos. Do contrário, estava perdido. Meus filhos podem morrer a qualquer momento, a pessoa amada pode morrer a qualquer momento. Ou pode simplesmente ir embora… O que é pior do que morrer. Quando ela morre, fica minha, sabe? Se ela morrer eu sei que não vai me trair com ninguém. Está guardadinha na fotografia. Tem aquele poema do Cassiano Ricardo em que ele fala: “Por que é que mais me comove o seu retrato quando você mesmo está presente? É porque ele está eterno, fixado, fora do tempo.” A possibilidade da perda existe, temos de aprender a conviver com ela. Se eu tiver medo de perder meus filhos, a minha tentação vai ser colocá-los em uma gaiola para que eles não se percam e, ficando numa gaiola, aí é que eles se perdem. É muito esquisito, mas tenho que aceitar o sofrimento de saber que eles podem voar e nunca mais voltar. Então tem sempre uma pitada de tristeza. Adélia estava certa.
Luíza de Andrade – O que o senhor acha das cartas de amor?
Rubem Alves – Acho comovente. Tem uma tela do pintor Vermeer que é uma mulher lendo uma carta. É um quadro que tenho no meu quarto. A carta só tem sentido quando os dois estão separados. A carta é um sinal de solidão. A gente escreve não para dar informação. As informações não têm a menor importância, porque elas não fazem parte da essência da carta de amor. O que faz uma carta de amor é o fato de que um tocou aquela folha e o outro vai tocar a mesma folha de papel. Assim, você toca a carta, mas o outro não está lá. É por isso que a carta de amor tem essa beleza triste.
Luíza de Andrade – O senhor também a compara ao telefone.
Rubem Alves – Você não pode deitar com o telefone, nem abraçá-lo. Aí, a gente só fala coisas bobas. Numa carta você pode dizer que passou por uma rua, sentiu cheiro de jasmim, tantas coisas assim. No telefone, parece que essa intimidade é perdida porque ele não tem poder para guardar o amor.
Luíza de Andrade – Como fica o amor nos tempos da Internet?
Rubem Alves – O problema é que, mesmo se você imprimir o e-mail, não é possível guardar um perfume. Falta ao e-mail esse poder mágico das cartas de amor, mas é claro que você pode usá-los. Mas há desvantagens: na carta, você sabe que há intervalos e é nessa distância que acontece a saudade. O e-mail é tão fácil que não deixa isso acontecer. Por outro lado, têm possibilidades que a gente não explora. No filme “Alguém tem que ceder”, há uma hora deliciosa que os personagens estão na cama e começam a se comunicar por Internet. E aquele se comunicar pela Internet é o início de um comunicar-se pela pele.
Luíza de Andrade – Que papel é relegado ao amor e ao sexo na velhice de homens e mulheres?
Rubem Alves – Acho que existe muita fantasia sobre o fato de que os velhos não têm mais desejo e poder sexual. Eu acho que eles não têm desejo porque a vida vai ficando tão chata e a relação vai ficando tão frouxa, sem sentido, que realmente as pessoas não têm desejos umas pelas outras. O problema não é hormonal. Eu me lembro de um caso gozadíssimo de um senhor de Minas, que era casado e muito respeitado. Era um casal símbolo da solidez. Mas a mulher dele morreu. Ele já estava com uns 70 anos e resolveu arrumar umas namoradas muito atrapalhadas. Até que a família se reuniu para dar um “chega pra lá” nele. Ele olhou para a família, deu um tapa na mesa e disse: “Eu tenho minhas necessidades sexuais. Está encerrada a conversa.”
Luíza de Andrade – Em uma crônica, o senhor fala que “o nosso desejo é sempre o de engaiolar o outro e levá-lo para caminhos que são nossos”. Há outra possibilidade de relação?
Rubem Alves – Isso acontece nesse momento entre nós. Você está me fazendo perguntas que são sobre os meus caminhos. E, querendo ou não, quando falo, estou tentando mostrar a você como eles são. Todos nós, o tempo todo, falamos sobre nós mesmos. Isso acontece não só no falar. Eu brinco que tenho vontade de inaugurar uma nova técnica de psicanálise em que o psicanalista pede que a pessoa leve à análise as fotografias que tirou no último ano. E nas fotografias dela está revelado o que ela considera como realmente importante. Porque quando eu fotografo, faço uma escolha.
Luíza de Andrade – É mesmo preciso que haja saudade para que o amor cresça? Um cotidiano feliz não pode ser, ao contrário, o que aproxima as pessoas?
Rubem Alves – O cotidiano é terrível. A Lya Luft escreveu, depois que o amado dela morreu, o Hélio Pelegrino, que, como eles viveram pouco tempo, não houve tempo para a banalização da relação. O amor vive muito de fantasia, de encantamento. O cotidiano faz isso: a gente olha para a pessoa sempre tendo o perigo de se perder o encanto. Não acredito que haja uma relação amorosa que seja só de encantamento. Mas acho que uma relação amorosa que não tiver, de vez em quando, uma experiência de encantamento, é uma relação amorosa que não vai durar. Você me perguntou se eu acho que é possível viver junto amando. Eu acho que sim. Mas isso só é bom se preservar essa relação de encantamento e os dois não virarem sócios na empresa chamada casa, matrimônio.
Luíza de Andrade – O senhor evoca As Mil e Uma Noites para dizer que a arte de conversar é a sexualidade sob a forma da eternidade: É o amor que ressuscita sempre, depois de morrer. A conversa é a solução para um amor duradouro?
Rubem Alves – É preciso dizer o seguinte: não adianta falar “ah, vamos dialogar”. Eu brinco sempre com a minha mulher, quando um está meio ruim com o outro, que é conversando que a gente se desentende. Tem que dar um tempo. Mas a relação amorosa acontece exatamente na conversa, quando você pode levar o outro para os seus caminhos. É a conversa que abre para o mundo interior, o que seduz a outra pessoa. Mas isso não quer dizer “vamos dialogar”, meio mecânico. Isso não funciona. Há determinadas coisas que não têm técnica, a gente precisa prestar atenção. É prestando atenção que a gente percebe quando é hora de falar e de se calar.
Luíza de Andrade – Qual o segredo do amor que não se apaga?
Rubem Alves – Há muitos casamentos que são equívocos e é bom mesmo que se desfaçam para as pessoas terem outras oportunidades na vida. Agora, o segredo de você ficar amando, isso eu não sei. É preciso aprender a viver sozinho, a fazer silêncio. Assim, a gente pode conviver com o outro. A possibilidade de perda sempre existe e temos que aprender a lidar com ela também. Quem a gente ama pode voar a qualquer momento…
Luíza de Andrade – Qual o recado do senhor para os namorados?
Rubem Alves – O que digo é que, por favor, leiam a história da menina e do pássaro encantado. Porque a coisa mais terrível nos namorados jovens é a tentativa de controlar, de engaiolar. E não há amor que resista à perda da liberdade. Ela é mais importante que o amor. A liberdade é o ar que o amor respira. Se não houver liberdade, não existe a possibilidade de que o amor dure.
Mineiro de Boa Esperança, Rubem Alves (www.rubemalves.com.br) é professor emérito da Unicamp, em Campinas (SP), onde mora. Em seu currículo estão um mestrado em Teologia, um doutorado em Filosofia – ambos nos EUA – e mais de 70 livros de crônicas, Educação, Filosofia e Literatura infantil.
Esta página faz parte do sítio Leituras cotidianas – Vol. 2
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